ANO DA PSICOTERAPIA

segunda-feira, 7 de setembro de 2009


As Psicoterapias – em suas variadas formas – compõem um dos múltiplos dispositivos do vasto campo da clínica na contemporaneidade. Tendo a clínica médica como seu nascedouro, forjou seus métodos e técnicas a partir da experimentação concreta de suas práticas, incorporando outros saberes e disciplinas ao seu exercício, na tentativa de aproximar-se cada vez mais da realidade complexa sobre a qual opera e na qual se encontra imersa: a vida em seu contexto singular de relações.
Nesse sentido, se a Psicologia como profissão não é prerrogativa para o seu exercício, os conhecimentos produzidos nesse campo e pela Psicanálise fornecem uma importante contribuição na condução da prática psicoterápica, dando expressão à sua potência terapêutica – entendida aqui como possibilidade de criação e produção de novos sentidos e modos de conexão com o mundo. Afirma-se, assim, o caráter eminentemente interdisciplinar e multiprofissional de sua prática, colocando limite a certo arroubo corporativista que reivindica para psicólogos a exclusividade do seu exercício.

Ora, a abordagem das psicoterapias como campo interdisciplinar nos convida a lançar um olhar sobre o lugar de proveniência e emergência da clínica como prática discursiva da modernidade (psicanálise e psicoterapias aí incluídas), extraindo disso suas conseqüências éticas. É Foucault quem nos guiará nessa reflexão.
Com ele aprendemos que as ciências humanas (a primeira delas sendo a clínica médica) nascem a serviço do estado moderno, na passagem do poder soberano ao poder disciplinar, no final do século XVIII. As práticas e saberes que surgem nas ciências humanas têm a função de normalizar aquilo que foge à norma instituída - as anomalias da sociedade e que representam os pontos de resistência ao poder disciplinar.
Os dispositivos do poder disciplinar disseminam-se, então, através das instituições e discursos que a cidade moderna engendra (instituições como escolas, prisões, hospícios; discursos como pedagogia, criminalística, psiquiatria...), e terminam por alcançar a intimidade da vida familiar. Aí, na medida em que a soberania familiar vai-se tornando mais e mais permeável ao discurso disciplinar, uma relação estreita é estabelecida entre o espaço da família e os dispositivos disciplinares: de um lado, a família se encarrega de designar o indivíduo anormal no seu interior; de outro, as disciplinas psi, como a psiquiatria, psicologia, psicopedagogia, acolhem os anormais apontados pela família sob a promessa de “refamiliarizá-los”. É nesse ponto que se constitui o que Foucault chama de função-psi, descrita como um discurso que assinala o fracasso da soberania familiar, evidenciado no caráter indisciplinável do indivíduo.
Nesse contexto, ensina Foucault, tem surgimento a Psicanálise, referenciada a esse modelo de uma psiquiatria familiarizada (ou uma família psiquiatrizada). Porém, há um aspecto em particular em que a Psicanálise se destaca do conjunto das disciplinas que compõem a função psi descrita pelo autor.
Diferentemente da Medicina e da Psiquiatria do século XIX, Freud vai dar ouvido ao que as histéricas de então dizem, atribuindo valor de verdade àquilo que, para os médicos, não passava de simulação. É escutando as histéricas que Freud vai tecendo os fios de sua teoria. Freud reconhece nelas um saber, uma verdade, e é daí que extrai o saber psicanalítico – sempre inconcluso, aberto às vicissitudes dos caminhos que a experiência permite percorrer, sujeito ao inesperado que a escuta atenta de seus pacientes suscita.
Disso emerge a novidade que a Psicanálise vem representar no campo das ciências humanas de modo geral, da clínica em particular, e, em especial, no campo das psicoterapias. Isso por que na medida em que a verdade é colocada do lado do paciente, há o reconhecimento de uma dimensão de imprevisibilidade que é inerente ao saber/poder em jogo na relação terapêutica. Imprevisibilidade que, justamente, as disciplinas psi tiveram a retensão de eliminar, de controlar.
É assim que Pinel(1), lá nos começos da clínica psiquiátrica, vai definir a terapêutica da loucura como “a arte de subjugar e domar o alienado, colocando-o na estreita dependência de um homem que, por suas qualidades físicas e morais, seja capaz de exercer sobre ele um domínio irresistível”. Ou seja, o que conta, para a prática psiquiátrica, é sua eficácia em produzir a disciplina esperada, em domar a força desmedida da vontade do louco, num momento em que a loucura passa a ser definida como um excesso de vontade.
Pinel é filho de seu tempo, bebe dos ideais da revolução que a França acaba de viver. Tem a ambição iluminista de trazer os homens à razão, de torná-los claros, transparentes à consciência. Freud também é filho de seu tempo, no início chega a pegar carona com Pinel, mas a sua obra instaura uma discursividade nova. No que diz respeito a uma concepção de subjetividade, pode-se dizer que tanto Pinel quanto Freud compartilham a idéia de que a subjetividade se constitui na relação com o outro.
Mas, diferente de Pinel, Freud entende que se trata de uma subjetividade não transparente a si mesma, que não se deixa apreender integralmente por um saber, guardando uma dimensão inconsciente de resistência, que não se deixa capturar. Esse é o maior legado que Freud nos transmite.
Ao citar Pinel e Freud, estou sendo fiel a Foucault, que se dirige ao passado com as questões do presente. Falo de Pinel e Freud porque eles podem nos ajudar a tomar posição no campo difuso das psicoterapias hoje e do afã de regulamentação que as cerca.
Não vivemos mais a sociedade disciplinar do século XIX, ou a vivemos no seu ponto máximo, no seu limite. As estratégias e cálculos do poder se exercem agora a céu aberto, entranhadas nas subjetividades. Cada vez menos envolvem um conflito entre duas vontades, como descreveu Pinel, onde, por força do submetimento à norma, um corpo se fazia docilizar – mais ou menos – pelas disciplinas.
O capitalismo globalizado implode as normas, requer subjetividades fluidas e maleáveis, adaptáveis à nova ordem, às prescrições móbeis da existência. Resistir tornou-se uma palavra de ordem em desuso. Os novos arranjos de sobrevivência na cidade contemporânea buscam desembaraçar-se do conflito, descartando o pacto urbano e substituindo a negociação pela violência do silenciamento.
De assentamento humano, onde está dada a chance do encontro com o estranho, aberta, portanto, ao embate de forças, a cidade se transforma em área de serviços que se oferece uniforme, ordenada, asséptica e previsível, aos capitais internacionais. A política, como poder de disputa e negociação, dá lugar à polícia, com poder de controle, criminalização e anulação das diferenças.
E, no entanto, ou por isso mesmo, a ética em que Freud pauta sua clínica, que reconhece essa dimensão de resistência que é própria à subjetividade, se faz cada vez mais crucial para orientar a nossa clínica na contemporaneidade. É o que nos permite entender que, se a histeria era o signo da resistência à injunção disciplinar, pela recusa da sua apropriação pelo saber médico, a compulsividade é hoje um dos traços que leva ao seu limite paradoxal o imperativo do consumo presente na atualidade.
Assim, a ética da clínica – e, portanto, das psicoterapias – é também sua política. Se a prática em que nos engajamos busca a instauração de formas singulares de existência, se o que buscamos é inventar, multiplicar, modular novas formas de relação, buscando constituir laço sem que isso implique o apagamento de uma singularidade, ou seja, mantendo viva a chama de uma resistência, trata-se de uma escolha clínica e política.
Uma escolha que só pode operar na contramão de uma sociedade disciplinar, psiquiatrizada. Trata-se então de uma sociedade que, contemporaneamente, no limite da sua capilarização, vale-se do controle que cada um exerce sobre si mesmo. Por exemplo, através da auto-medicação. Uma escolha que se afirma no contrafluxo de um mundo em que cada vez mais se usam as tecnologias de saúde para determinar performances e prescrever comportamentos, abandonando as práticas linguageiras e intensivas do campo psi, na ambição de controlar os corpos pelo apagamento do menor traço de resistência, por meio de soluções neuroquímicas.
Evidentemente, nem toda clínica, nem toda psicoterapia, se exerce dessa maneira. Mas toda clínica, toda psicoterapia, é comprometida, implicada politicamente. Em cada clínica é possível reconhecer, ao mesmo tempo, o pólo disruptor que emerge de suas práticas, através do qual se faz possível uma reinvenção da existência, um alargamento dos modos de habitar a cidade; e o seu pólo normalizador, ligado ao contexto disciplinar de onde tais práticas provêm, em que se impõe uniformidade e controle à vida na cidade.
Sermos capazes de reconhecer a presença desses dois pólos em cada ato clínico que produzimos já nos situaria num patamar muito promissor de exercício das práticas psicoterápicas.
(1) Apud Michel Foucault, O poder psiquiátrico. São Paulo:Martins Fontes, 2006.

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